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Cinco temas em Psicanálise

Em 1908, Freud recebeu um convite para apresentar discussões acerca da psicanálise na Clark University. No ano de 1909, o convite feito por Stanley Hall foi concretizado. Nesse ínterim, Freud se deslocou à Worcester, por ocasião do vigésimo aniversário da referida instituição, e pronunciou as cinco lições de Psicanálise, inaugurando a primeira exposição sistemática de sua teoria. Momento que foi considerado um marco do reconhecimento de suas descobertas. Cabe mencionar que entre as cinco lições expostas por Freud estão importantes conceitos do arcabouço teórico que envolve a psicanálise, como histeria, resistência e repressão, chistes e atos falhos, sintomas e sexualidade, e, transferência.

Lacan (1955/1988), relatou que em um encontro com Jung, lhe afirmou que quando viajava junto de Freud para a série de Conferências na Clark University, Freud teria dito, no instante em que avistaram a célebre Estátua da Liberdade: “Mal sabem eles que eu lhes trago a peste!” Transcorrido mais de um século, a conferência realizada por Freud, a partir de cinco lições, é, ainda, um importante material para aqueles que se interessam pela psicanálise. Inclusive, para aqueles que farão um primeiro contato com a obra freudiana por intermédio delas. 

Conforme referido, a primeira lição argumentada por Freud envolve a temática da histeria. Em tal empreitada, o autor relata o caso de Anna O,  que foi tratada, inicialmente, pelo médico Josef Breuer a partir do método da hipnose. Ana O, tinha à época vinte e um anos e apresentava sintomas, como paralisia dos braços, alteração da visão, repugnância por água, alteração de fala e da memória, delírios e alucinações. Tais sintomas eram associados à conversão histérica. Cabe apontar que a histeria desafiava, naquele momento histórico, o poder médico existente, uma vez que não era uma doença orgânica, sendo caracterizada como uma doença dos nervos sem protocolos de tratamento que apresentassem efetividade na cura ou remissão dos sintomas por longos períodos de tempo. 

Em sua tentativa de desenvolver um novo protocolo de tratamento, Breuer ouvia e anotava as palavras que Anna O pronunciava durante seus estados de ausência.  Durante as sessões de hipnose, ele recuperava tais palavras e incitava à associação das ideias a elas relacionadas na tentativa de evocar afetos. Para exemplificar, Freud apresentou dados referentes ao momento em que esta paciente deixou de tomar água diretamente, mas se hidratava através de frutas. 

Segundo exposto por Freud, durante as sessões da paciente junto a Breuer, foi possível relembrar que ela havia visto o cachorro da casa beber água do copo de sua dama de companhia. Considerando que ela não se afeiçoava com ambos e nunca deixou este sentimento se tornar público e visível, tal conteúdo foi retirado de sua consciência, ocasionando na conversão voltada à sua repulsa por água. Tal qual lembra Freud, no decorrer de suas cinco lições, o neurótico sofre de reminiscências convertidas em sintomas cujos rastros podem conduzir a uma experiência traumática que ao ser trabalhada conscientemente pode gerar novas simbolizações e a extinção dos sintomas. 

A partir dos achados de Breuer e de um afastamento da hipnose por considerações que envolviam a não sugestionabilidade de todos os sujeitos à técnica,  bem como o fato de os conteúdos não serem trabalhados, a partir dela, ao nível da consciência, Freud desenvolveu a ideia de associação livre de ideias. Nela, os sujeitos são estimulados a falarem sem se preocupar com um ordenamento racional dos conteúdos. Além disso, são estimulados a falar o que lhes vem à mente. Esta técnica, junto da atenção dada aos chistes, sonhos e atos falhos tornou-se primordial à psicanálise, por ser considerada uma maneira de favorecer o acompanhamento dos rastros da conversão das reminiscências e, assim, possibilitar a escuta de materiais inconscientes e o estabelecimento de novos processos de significação.

A partir da sequência apresentada por Freud, destaca-se na segunda lição a atenção da psicanálise à resistência e repressão, bem como ao entendimento de que onde há uma resistência, houve no passado a repressão de conteúdos conscientes. Nesse seguimento, Freud inicia a segunda lição apontando para a importância do conceito de resistência para o desenvolvimento de seus estudos sobre histeria, em que as resistências necessitam ser afastadas para a recuperação dos doentes dos nervos. Inclusive, menciona que a “hipnose esconde a resistência e torna acessível determinado âmbito da psique, mas, em troca, acumula a resistência nos limites desse âmbito, formando uma muralha que torna inacessível tudo o que está além” (FREUD, [1910] 2019, p.245).

Desse modo, a ideia de resistência pressupõe, nesse contexto,  à força que mantém determinados conteúdos longe da consciência ou que se opõe ao acesso ao inconsciente. Junto das forças de resistência, que se opunham a tornar conscientes determinados conteúdos, atuavam forças que provocavam esquecimento de tais conteúdos, cujas pulsões ao buscarem satisfação, poderiam escoar na forma de sintomas: “(...) no inconsciente o desejo reprimido continua a existir, espreita por uma oportunidade de ser ativado, e então consegue enviar à consciência uma formação substitutiva para o que foi reprimido (...) (FREUD, [1910] 2019, p.246).

A esse processo, cujo material é destinado ao inconsciente e cujos conteúdos continuam lutando em busca das satisfações, com a possibilidade sempre presente de retorno, Freud denominou de repressão - lembrando que as resistências tendem a se estabelecer após a consumação da repressão: “ No doente em tratamento, atuavam duas forças contrárias: de um lado seu esforço consciente em atrair o material esquecido para a consciência, de outro a resistência nossa conhecida, que se opunha a que o reprimido ou seus derivados se tornassem conscientes  (FREUD, [1910] 2019, p.249). 

A seguir, Freud argumenta, na terceira lição, que quanto maior a resistência maior a deformação do que era buscado. Nesses casos, o pensamento deveria ser, em relação ao conteúdo reprimido, como uma representação dele em discurso direto. Um caso assim é o chiste. Ou seja, uma forma de se expressar algo de forma distorcida, como uma “alusão com omissão”. É comum que no chiste se atribua um sentido a um comentário, descobrindo nele uma verdade, até então inconsciente.

 Há, nesse ínterim, a promoção de um esclarecimento antecedido por um desconcerto, os quais são compreendidos pelos vínculos dos conhecimentos subjetivos do autor. Contudo, o chiste exige “acordo psíquico” entre o autor e quem o escuta - as inibições internas são superadas com a conclusão do chiste. O ouvinte quando escuta deve erigir semelhante inibição a de quem o proferiu, e, assim, ter o riso provocado (FALCÃO, 2002).

Outros recursos técnicos associados à exploração do inconsciente, conforme exposto por Freud, seriam a interpretação dos sonhos e dos atos falhos. Nas palavras de Freud ([1910] 2019 p. 254): "A interpretação dos sonhos é, na realidade, a via régia para o conhecimento do inconsciente, o mais seguro alicerce da psicanálise e o campo em que qualquer estudioso pode adquirir sua convicção e buscar seu treinamento”. Acerca dos sonhos, o autor aponta suas relações com os desejos, bem como os processos de condensação e deslocamento que nele ocorrem, bem como de distorções. 

O terceiro grupo de fenômenos psíquicos, cujo estudo também se tornou recurso técnico da psicanálise são os atos falhos, definidos por Roudinesco (1998) como: atos por meio dos quais o sujeito substitui um projeto por uma ação ou uma conduta imprevista/intencional. Tais atos são comuns aos neuróticos e aos “sujeitos normais” e tendem a ser tratados sem a importância devida. Eles incluem lapsos como esquecimento de nomes próprios, lapsos verbais e escritos, atrapalhações, trocas de palavras. Contudo, estes devem ser vistos como sintomas e, assim como no caso dos sonhos, podem conduzir ao desvelamento do que se acha oculto na psique.

Cabe sublinhar a relevância dos achados freudianos acerca dos atos falhos para o desenvolvimento da psicanálise. Para isto, recorre-se a Lacan ([1954] 1986, p.302): “Nossos atos falhos são atos que são bem sucedidos, nossas palavras que tropeçam são palavras que confessam. Eles revelam uma verdade por detrás. (…) Se a descoberta de Freud tem um sentido é este – a verdade pega o erro pelo cangote, na equivocação”. 

Nesse sentido, frisa-se que a psicanálise busca conduzir o que se encontra reprimido na psique ao reconhecimento consciente, de modo a possibilitar novas simbolizações e, caso possível, a eliminação das conversões das manifestações sintomáticas. Acerca dos sintomas, Freud inicia a quarta lição comentando que os sintomas dos doentes dos nervos são ligados às impressões de sua vida amorosa. Vida esta, que diz de uma sexualidade presente desde a infância dos sujeitos. Ainda que durante a infância tal sexualidade se paute no autoerotismo e na satisfação parcial das pulsões.

Freud aponta que a vida sexual da criança, em seus primeiros anos de vida, tem importante peso na organização psíquica dos sujeitos, bem como no desenrolar/suscetibilidade das experiências traumáticas a serem vividas na vida adulta: “Apenas as vivências da infância explicam a suscetibilidade a traumas posteriores, e apenas desvelando e tornando conscientes esses traços mnemônicos quase invariavelmente esquecidos é que adquirimos o poder de eliminar sintomas” (FREUD, [1910] 2019 p. 266)”.

Contudo, para que se possa ter análise possível, e assim, ocorrer a possibilidade do trabalho psíquico mencionado, necessita-se da ocorrência da transferência. Esse fenômeno que ocorre em todas as relações humanas e que se repete na relação médico-paciente ou analista-analisando. Nesta relação amorosa é dirigido ao analista uma certa medida de impulsos afetuosos, que podem mesclar-se com hostilidade, e que remontam a velhas fantasias e desejos inconscientes. Nos termos de Freud ([1910] 2919, p.280): “Assim, aquela parte da vida emocional do paciente que ele não pode evocar na lembrança é vivenciada novamente na sua relação com o médico, e apenas com esse reviver na “transferência” ele é persuadido da existência e do poder de tais impulsos sexuais inconscientes”.

A partir de tais lições, Freud ([1910] 2019) encaminha o encerramento de sua sistematização teórica, porém, não antes de apontar que o trabalho psicanalítico se põe a serviço das mais altas tendências da civilização, como um substituto para a repressão mal sucedida. Ademais, é possível, a partir dela, pensar na possibilidade de substitutos socialmente desejáveis para o conteúdo reprimido - sublimação -  e no autoconhecimento que visa aqueles impulsos libidinais reprimidos que podem alcançar uma satisfação direta. 

À guisa de conclusão, relembra-se que o espraiamento da peste que subverte o status quo, ao buscar tornar o sujeito advertido, inclusive, diante das desordens que vive, possibilita a ressignificação de situações sofríveis. Circunstância que permite que se observe que o sofrimento/ angústia acrescido nas dores de cada sujeito, durante o processo analítico, no emprego da boa técnica, é perfeitamente desprezível em relação à gravidade do sofrimento de base. Afinal, a força de um impulso relacionado a um desejo é infinitamente maior quando é inconsciente do que consciente. Desta feita, a possibilidade de ser debilitada se faz ao nível da consciência, e, conforme aqui exposto, em análise. Por fim, estima-se que a peste continue se espalhando e introduzindo mudanças na posição subjetiva de quem é por ela inoculado e tem seu modo de viver a realidade subvertido a partir de torções subjetivas (LIMA, 2020).

 

REFERÊNCIAS

FALCÃO, A. L. B. Sobre os chistes. Simpósio de Brasília/DF–2002. 

FREUD, S. Cinco Lições de Psicanálise (1910) In: Obras completas - Observações Sobre Um Caso de Neurose Obsessiva ("O homem dos ratos"), Uma Recordação da Infância de Leonardo Da Vinci e outros textos (1909-1910). São Paulo: Companhia das Letras, 2019. v.9.

LACAN, J. O seminário. Livro 3. As psicoses (1955-1956) Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1988.

LACAN, J.. O Seminário Livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1986. 

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise (10a ed.). São Paulo: Martins Fontes, 1988.

LEITE, S. A Peste: breves reflexões sobre psicanálise, arte e cultura. Rev. latinoam. psicopatol. fundam. 23 (2) - Apr-Jun 2020 

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise.. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

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